segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sobre regar flores de asfalto e reabrir gaiolas

Eu me lembro de ter passado pela sua casa e ter reparado nas janelas trancadas, nas cortinas fechadas. Na porta, você tinha pendurado uma placa de solidão sitiada. Eu pulei o portão e tive que fugir do cachorro zangado, mas quando fui bater na porta, não saiu som algum. Você tinha guardado todo som. E andava descalça, para não escutar os próprios passos. Soube disso porque seus sapatos, aqueles que você gosta tanto, estavam do lado de fora. Acho que você quis sumir. Só conseguia pensar em quando a gente vai ao médico pedindo a tal pílula da invisibilidade e ele diz que não pode receitar. Encostei o ouvido na porta e ouvi a sua dor consolidando o ar. Ouvi o seu pesadelo como um eco do meu próprio passado. Eu quis gritar pra te acordar, mas não tive voz. 
Quis te estender a mão e dizer para você não soltar, enquanto correria para longe, te arrastando comigo. Fugir dos campos de concentração emocional dos poços. Quando você abriu a porta, já era inverno e as noites quentes de verão demorariam a voltar. Quis deitar você no meu colo e desembaraçar seus cabelos com os dedos. E eu te entendo tanto, mas tanto, que talvez preferisse não entender. Ou, ao menos, entender de outro modo. De um jeito que não fosse a repetição de tanta angústia. De um modo que não fosse o reflexo de tanta dor. Eu não queria, juro que não queria, que você também conhecesse essa estrada tão escura. Eu queria mesmo, era que nada mudasse para você. Que fosse você o espelho em que eu pudesse me refletir, e não o contrário. Mas sabe? Eu vou tentar limpar essa minha imagem. Por você. Para que possamos refletir uma imagem mais bonita que essa. Eu sinto vontade de acreditar nisso com tanta força, que a verdade tenha medo de me contrariar e aconteça. Sabe? Tem uma hora que a gente precisa parar de desistir dos sonhos. Tem vezes, que só band-aid não resolve. Tem que suturar e esperar cicatrizar. Tem uma hora que precisamos pegar uma caixinha de costura e remendar a asa rasgada. E você pode acreditar em mim, dá pra voar de novo mesmo com remendo. Quanto ao que fazer com tantos cacos, depende das cores. Se forem pretos, varre pra fora e joga no lixo. Se coloridos, faça um vitral para o enorme buraco que se abriu na parede. Tem uma hora, que o sol vai poder entrar novamente pelas frestas das janelas e você vai querer trocar as cortinas. E é só o começo, porque pra mágica acontecer, é preciso confiar nas mãos do mágico e não nos segredos que ele esconde. Tem coisa que nunca vamos descobrir o motivo. Então é melhor simplesmente aplaudir ou vaiar o show. As folhas dependem da semente que se planta. Eu te ajudo com os adubos. Eu trago o sol pro teu vitral. E espero você abrir a porta mais uma vez pra te perguntar: "Você também se cansou da tristeza que nos consome no fundo dos poços?". E se você me responder que cansou de cavar para baixo, já estaremos mais perto do verão outra vez. Vamos remar contra a corrente e desafinar no coro dos contentes*. Abre a tua gaiola, minha amiga. Você não é tranca e nem pouso. Se faltar amor a gente vira hippie. Mas se faltar encanto, a gente faz as malas e foge com o circo. Você casa com o mágico. Eu, com o trapezista. E se faltar o vento, a gente inventa*. Depois é só descobrir um jeito mágico de voar, só pra ver o mundo de outro ângulo. Juntas, compraremos uma escola de sonhos abandonada. Vamos jogar fora todos os restos de mágoas, potes de tristezas e ensinamentos obscuros dos quadros negros. Compraremos quadros brancos, faremos tudo de novo. Vai ter reforma. Cores vivas nas paredes. Brinquedos coloridos no pátio. Luz do sol alimentando o interior ao invés de energia negativa. É só mudar a disciplina, minha amiga. Consegue imaginar os novos sonhos, pequeninos, crescendo e se formando? Consegue imaginar eles graduados, enfrentando o mercado de desilusões afundadas? Consegue ver o progresso de reeducar os sonhos? Depois da reforma necessária, a escola estará lá, esperando os novos alunos que teremos que matricular. E no final, na parede da diretoria, nossa foto permanecerá emoldurada com a inscrição: "As que acreditaram".

Vamos estocar sonhos para o próximo inverno. As cigarras não freqüentam a mesma escola que eles.



*Trechos de “Pose”
~Engenheiros do Hawaii



.Carol Rodrigues.

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